Especialista
na legislação de combate ao racismo, o advogado Hédio
Silva Jr., 40, diz que as leis brasileiras contra a discriminação
estão entre as melhores do mundo, mas, paradoxalmente, dão
pouco resultado. Na avaliação dele, o operador do direito
(do policial ao juiz) trata do crime de racismo com base em estereótipos,
e não na lei. Para Silva Jr., o governo nada tem feito contra
a situação de desigualdade vivida pela população
negra.
"A única política de inclusão para
o negro é a política penal", critica. Silva Jr.
era um dos 14 representantes da sociedade civil no comitê misto
criado pelo governo brasileiro para preparar a posição
do país na Conferência das Nações Unidas
contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia e a Intolerância,
que acontece em setembro na África do Sul. Insatisfeito
com a política pública governamental de combate ao racismo,
ele rompeu ontem com o comitê, durante a Conferência Nacional
Contra o Racismo e a Intolerância, realizada no Rio como preparação
para o encontro da ONU. A seguir, trechos de sua entrevista à Folha:
Folha -
Como o sr. avalia o resultado da conferência?
Hédio Silva Jr. - A rigor, o resultado não trouxe novidade
a não ser o fato estranho de se tratar de uma conferência em
que o único ator a se pronunciar foi a sociedade civil. O Estado entrou
silente e saiu calado. Foi lançado um plano de combate ao racismo
cuja maioria das propostas já constava de um plano lançado
há cinco anos. É lamentável que o Estado não
tivesse nada a dizer.
Folha -
Como o sr. analisa a política do governo contra o racismo?
Silva Jr. - A única política diferencial que o governo
federal tem para a população negra é a política
de inclusão penal. O sistema penal e a Justiça criminal tratam
a população negra de modo diferenciado, têm uma sinistra
predileção por negros. Tínhamos expectativa de que o
governo pudesse levar para a África do Sul pelo menos uma medida concreta,
e não encontro nenhuma.
Folha -
Por que deixou o comitê?
Silva Jr. - O governo vende uma imagem externa de que aqui
existe perfeita integração com a sociedade civil, passando, no plano
internacional, a imagem de que dialoga e reflete os anseios do movimento
negro. É um diálogo sem consequências, um monólogo;
porque nós falamos, a diplomacia escuta, mas isso não se reflete
em compromisso. Temos a mesma indiferença do primeiro escalão
do governo Fernando Henrique para adotar qualquer medida.
Folha -
O que é ação afirmativa?
Silva Jr. - A ação afirmativa nasceu nos Estados
Unidos em 1965, um ano depois da adoção da Lei dos
Direitos Civis, quando o presidente Lyndon Johnson baixou um decreto
exigindo que as empresas que contratassem com o Estado fizessem um
esforço para empregar negros. Houve um entendimento de que
as desigualdades entre os negros e os brancos nos EUA eram de tal
monta que, se o Estado não investisse de modo diferenciado
no segmento negro, nunca haveria igualdade de fato. Historicamente,
assumiu várias configurações. Nos EUA, uma empresa
não é obrigada a contratar negros, mas deve ter uma
política de inclusão de negros, e hoje de asiáticos.
Na Índia, há cotas, efetivamente. Na África
do Sul, há a ação corretiva, em que o governo
fiscaliza as empresas.
Folha -
Mas há racismo nos EUA...
Silva Jr. - Quando se pensa em ação afirmativa,
pensa-se em diminuir as taxas de desigualdade entre negros e brancos,
em assegurar maior exercício de direitos. Não se está pensando
em mudança de valores. É o limite que a lei pode desempenhar.
A lei não tem como obrigar os brancos a amar os negros, mas
tem como obrigar um indivíduo a não violar o direito
de um negro. Obviamente há um papel que pode e deve ser exercido
pela publicidade, pela educação, que é uma mudança
de valores, para fazer com que a diversidade, hoje associada à inferioridade,
seja valorizada.
Folha -
A separação de cotas para negros não é discriminação?
Silva Jr. - Quando você analisa a distribuição
de oportunidades no Brasil, vai constatar que existe uma política
de cotas que estabelece que 100% dos garçons da orla do Rio de Janeiro
sejam brancos, quase 100% da magistratura seja branca, 100% das comissárias
de bordo sejam brancas. Homens brancos no Brasil são beneficiários
de um privilégio material e simbólico. As políticas
de ação afirmativa visam acabar com os privilégios.
Não visam discriminar os brancos, mas eliminar os privilégios
que os brancos têm hoje só por serem brancos.
Folha -
O que o sr. propõe como política de ação
afirmativa?
Silva Jr. - Uma proposta apresentada ao governo foi que, na
lei de licitações, quando houvesse empate entre licitantes [hoje resolvido
por sorteio], fosse dada preferência a empresas que tivessem maior
número de negros verticalmente distribuídos - pois é possível
que uma empresa de limpeza tenha 90% de funcionários negros. Outra
proposta é, nas ações civis por discriminação,
inverter o ônus da prova: em vez de a vítima provar que foi
discriminada, o discriminador teria de provar que tomou providências
para não discriminar. Propomos que empresas condenadas por discriminação
percam temporariamente acesso a crédito ou financiamento público.
Folha -
E na educação?
Silva Jr. - O ministro Paulo Renato Souza chegou a assumir
o compromisso de cotas na distribuição da bolsa-escola.
Queremos recursos para os cursinhos para negros e carentes, que,
até hoje, não têm investimento do Estado. Há práticas
simbólicas e com custo zero, como uma orientação
para que a publicidade do governo inclua negros. Uma vez, o diretor
do Instituto Rio Branco me disse que negros não se candidatavam
no concurso da diplomacia. Sugeri que experimentasse colocar uma
garota negra no cartaz distribuído para as universidades.
Um cartaz onde só aparecem estudantes brancos dá um
recado aos negros de que aquele não é o lugar deles.
E há a abertura para adotar cotas. O esforço é para
evitar que a idéia de ação afirmativa seja confundida,
como tem sido, com cota. Quando se cria o debate sobre cota, o conjunto
de possibilidades empobrece.
Folha -
Como o sr. avalia a legislação racial no Brasil?
Silva Jr. - Temos uma das melhores legislações do mundo.
O problema é que os brancos que aplicam essa lei. Quem ingressa na
magistratura, no Ministério Público, na polícia, no
curso de direito, em geral, vem dos estratos médios da população.
Que experiência tem com negros? Teve um jardineiro, uma empregada doméstica
ou um motorista negro. Nunca ou dificilmente conviveu com um negro na condição
de igual. Quando vai aplicar o direito, no lugar de apreciar o caso segundo
o que diz a lei, vai apreciar segundo os estereótipos e valores que
formou. Muitos julgamentos sobre discriminação racial no Brasil
são ideológicos, contrários ao que diz a lei.
Folha - O
que encontrou ao pesquisar os processos de racismo?
Silva Jr. - Um número extraordinário de reclamações
de indivíduos que vão à delegacia e são destratados
por agentes da polícia. Defendemos delegacias especializadas, que
foram criadas e extintas no Rio e em São Paulo. Há um número
grande de ocorrências que não se transformam em inquéritos,
inquéritos que não se transformam em denúncias, denúncias
que não resultam em condenação. Desde 1951, quando a
discriminação passou a ser considerada contravenção
penal [o racismo só é crime desde a Constituição
de 1988], há pessoas condenadas por discriminação, mas
ninguém cumpriu pena. A despeito dessa dificuldade, cresce o número
de processos. Consegui localizar 200 processos em curso em 24 capitais.
Folha -
Há diferença
de resultados nas áreas penal e cível?
Silva Jr. - As ações civis de natureza indenizatória
têm apresentado mais possibilidade de êxito, talvez pela
resistência dos operadores do direito, que entendem que a pena
de prisão seria muito vigorosa para um fato que julgam de
menor importância. De 250 ocorrências de racismo na Delegacia
de Crimes Raciais de São Paulo, nenhuma resultou em condenação.
Na área criminal, a jurisprudência que tem sido firmada é desfavorável à punição
dos acusados. Hoje, tenho dúvidas se estávamos corretos
em exigir a criminalização do racismo na Constituição.
O fenômeno da discriminação no Brasil é incompatível
com a idéia de criminalização, porque é tão
absolutamente generalizado que a criminalização acaba
banalizando. Você tem um crime imprescritível, afiançável,
punido com pena de reclusão, e um cotidiano que gera um descrédito
na sociedade e nas vítimas em relação à aplicabilidade
dessa lei.
Folha -
Que orientação o sr. dá a vítimas de
racismo?
Silva Jr. - É importante manter a calma e anotar as circunstâncias
e o local em que o fato ocorreu. Em casos de racismo, uma das dificuldades é produzir
provas. A pessoa deve sempre se fazer acompanhar de um advogado. Uma coisa é o
delegado recusar a registrar uma ocorrência para a vítima, outra
coisa é fazer isso diante de um advogado. A pessoa deve instaurar
a ação criminal e também uma ação indenizatória.
Deve acreditar no Judiciário, apesar de tudo. Houve uma ação
em que um negro foi discriminado por um funcionário de uma agência
bancária e ganhou na Justiça Federal do Rio Grande do Sul uma
indenização de 450 salários mínimos. As pessoas
têm uma noção de impunidade muito forte quando se trata
de crime racial. É o que o Caetano [Velloso] diz: todos sabem como
se tratam os pretos. Essa é a regra informal da discriminação.
Folha -
Caetano diz que, para os americanos, branco é branco, preto é preto,
e a mulata não é a tal. É mais fácil assim?
Silva Jr. - Talvez Caetano tenha razão quando diz que a honestidade
com que os americanos lidaram com o que pensam sobre a questão racial
favorece a luta contra o racismo. Já me perguntaram: então
a segregação é melhor para os negros? É fácil
ser ativista contra o racismo na África do Sul ou em Nova York, mas
há 20 anos você era visto como louco por falar em racismo no
Brasil. O agente causador do racismo no Brasil é invisível.
Há dados sobre a discriminação, mas quem é o
discriminador? Ninguém é discriminador no Brasil. Há vítimas
da discriminação: os negros, pardos. Mas quem é o discriminador?
Ninguém é discriminador.
Folha -
O que o senhor acha da demanda de reparação dos negros
pelos anos de escravidão?
Silva Jr. - A reparação será o nó górdio
da Conferência da África do Sul. Os países africanos
querem uma reparação aplicada às questões de
comércio internacional e dívida externa; os EUA têm um
debate que passa pela quantificação e à questão
pecuniária. No Brasil, parte das entidades associa a idéia à reparação
pecuniária, mas a tendência da militância é associar
a reparação às políticas de ação
afirmativa. A rigor, me parece um exercício arriscadíssimo
tentar quantificar um valor que possa ressarcir a população
negra do holocausto que foi a escravização. Penso que a idéia
de ação afirmativa como política de reparação
não fica com os olhos presos no passado, mas projeta um novo futuro.
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